In “Retrato de um pensador errante”, texto de Luís Miguel Queirós in Publica, 13/05/2007, p.42.
“S. Pedro do Rio Seco é uma aldeia, do distrito da Guarda, entre outras aldeias que estão ali ao lado uma das outras, a cinco quilómetros. Não há praticamente comunicação entre elas, porque realmente não têm nada que trocar entre si. Naquele tempo eram economias de pura subsistência. A troca fazia-se apenas em dois sentidos: um para Vilar Formoso, que era a saída para o Mundo, era o caminho-de-ferro que trazia a Europa até ali. […] E depois, havia Almeida que era a sede administrativa do concelho, que ficava a nove quilómetros, mas onde só se ia também para a feira todos os meses, ou para a festa anual. Também se ia lá por ser sede administrativa: o registo civil, o tribunal e o médico […] E foi nesse mundo que eu vivi uma infância relativamente protegida e aberta também. Aquilo era o último estádio da civilização que já era uma civilização capitalista na sua franja mais rudimentar. Praticamente quase só se vivia do que se produzia na aldeia e não havia trocas. Apenas uma pequena troca que permit[ia] às pessoas comprarem qualquer coisa, vestirem-se, calçarem-se, etc. Muitos daqueles lavradores desse tempo não mandavam os filhos à escola porque não estava na perspectiva deles. Também não teriam dinheiro. Ninguém pensava mandá-los para a Guarda para fazer o Liceu, o quinto ano, e muito menos para a Universidade. […] Era um mundo muito arcaico que eu chamo Piccolo Mondo Antico, título de uma novela célebre de Antonio Fogazzaro, que é um título que eu acho admirável. Se algum dia escrevesse memórias sobre S. Pedro, teria um título parecido. Um pequeno mundo morto, ou coisa parecida”.In O Outro Lado da Lua. A Ibéria segundo Eduardo Lourenço, edição e entrevista de Maria Manuel Baptista, 2005 Porto, Campo das Letras.
“Era o tempo em que uma aldeia era o organismo vivo, espécie de homem colectivo separado do mundo que o desconhecia e ele desconhecia, homem de dura enxada e de seus parcos frutos. Entre a fome e o sol, todos os dias eram seus. Pouco a pouco, esse vasto mundo invadiu-lhe a casa, separou-o de si mesmo convidando-o para manjares mais suculentos que nunca mais lhe saciarão a antiga fome. Envergonhou-se dos tamancos, das meias de algodão, do casaco de sorrobeco, pôs um pouco mais de açúcar no café, aprendeu a ler e a esquecer o que lia e conheceu enfim a sua milenária miséria. Em quarenta anos passou da flauta de Pan e das aventuras de Dafne e Cloé ao esplendor imaginário da televisão e seus amores piegas, seus locutores ventríloquos, vendedores de elixires divinos. Só é pena que tanta felicidade e tanto sonho a domicílio não cure fome de séculos nem faça florir o deserto. As novecentas almas do povoado recolheram à sombra ou esperam por ela. Já não habitam essas cozinhas enfumadas de trogloditas felizes. As mais audazes partiram à busca de alimento, música, cinema, escola. Estão em África, no Brasil, em França, na Alemanha e até em Espanha. Lá é o São Pedro deles. Esta minha aldeia, sem história de ouro e de sangue, navio encalhado na meseta hispânica, enterra-se docemente na sua existência, com todas as luzes apagadas e um carregamento de fantasmas cobertos de antigo suor e de mais antigas lágrimas. Quem os pudesse ressuscitar…”In Jornal de Letras, Artes e Ideias, 8/5/1996
In Jornal de Artes e Letras, Artes e Ideias, 8/5/1996 (1995/9/10) citado in Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia, coordenação de Maria Manuela Cruzeiro/Maria Manuela Baptista, 2003 Porto, Campo das Letras, pp.47-49.
“Depois da escola primária em S. Pedro e do 1º ano no Liceu da Guarda vai para o Colégio Militar – “como podia ter ido para o Seminário” – São seis anos, dos 11 aos 17, interno, no que considera “um buraco negro” na sua vida que não gosta de recordar – “Um tipo do meu género engaiolado!. Não era e não sou de me adaptar a uma disciplina rigorosa. E esta só contribuiu para a minha indisciplina, o meu gosto contestatário, nessa fase da adolescência em que quase se muda de forma, de figura, espécie de metamorfose difícil para alguém com a epiderme mais ou menos sensível como eu.”Dessa época, conta histórias como a de a sua primeira nota em Filosofia ter sido um… zero, e a nota final a mais alta do curso, 19.
“A lembrança mais dolorosa é a de ficar no Colégio durante as férias da Páscoa. Em vez dos habituais 400 alunos restavam uns 20, como que excluídos do estatuto da maioria. Sentia uma espécie de abandono, que me pode ter marcado para sempre. Recordo-me também de, com 12/13 anos, arquitectar lições, romances históricos de um deles, passado no séc. XVIII, ainda tenho uma ideia nítida. A maior alegria, porém era ir ao cinema na Amadora, com os meus tios ou, mais raramente, ao Lys, em Lisboa com a minha tia […] O cinema da Amadora foi a minha primeira catedral. Não uma igreja, nem uma anti-igreja, mas uma catedral onde vivi os mais exaltantes, os mais sublimes momentos da minha adolescência. Para mim havia então dois portugais: um dentro do cinema, outro fora dele. Aquilo era o céu, o moderno sobrenatural e ao pé dele qualquer outra forma de religiosidade empalidecia”.José Carlos de Vasconcelos “O Mundo Secreto de Eduardo Lourenço” in VISÃO, 22/5/2003, p.144.
“[…] Cheguei a Coimbra com o máximo de ilusões que um estudante pode ter, convencido de que a Universidade ia abrir-me um futuro, ia dar-me horizontes pelos quais inconscientemente todo o adolescente suspira. E descobri cedo que, com uma ou duas excepções, que sempre existem no sistema universitário, me encontrava dentro de um sistema pedagógico e de um discurso extremamente fossilizados […] Devo dizer, em nome da verdade, que o ensino da filosofia propriamente dito não foi aquele que me suscitou a decepção universitária-tipo de que falei há pouco. Entre 1940 e 1945, quando fiz o meu curso, a história e filosofia estavam unidas, e era essa ligação que era mais criticável. Em Coimbra, era no campo próprio dos estudos históricos que o estudante tinha razões para considerar que esse ensino não tinha aquela qualidade universitária a que podia aspirar legitimamente. Não que, em geral, esses mestres não soubessem ou não dominassem certo campo. O que acontecia era que a maioria deles separava a investigação erudita, em que eram mestres, do ensino propriamente dito […] Não havia comunicação entre a actividade própria do professor enquanto erudito e a do professor que dava realmente a sua aula. A aula era dada como um eco de livros mais ou menos reconhecidos e em voga no plano internacional. Não havia, portanto, nesse capítulo, verdadeira inovação ou verdadeiro trabalho pessoal.
Quanto à filosofia, havia, no meu tempo, uma espécie de clivagem que, se fosse abertamente cultivada, e confessada como tal, teria sido interessante […] A filosofia era praticamente sempre a filosofia dos outros. Havia naquele tempo um semestre de História da Filosofia em Portugal, mas era uma cadeira menor e mesmo essa matéria era perspectivada de um ponto de vista da erudição mais do que de um ângulo em que se pudessem realmente discutir os problemas profundos da realidade portuguesa”.
In Eduardo Lourenço Cultura e política na época marcelista, entrevista de Mário Mesquita, 1966 Lisboa, Edições Cosmos, pp. 30-32.
Hoje durante toda a meia tarde até ao anoitecer conversei com o Carlos [Oliveira] como raras vezes me tem acontecido conversar com alguém, mesmo com os mais queridos dos seres. Já muitas vezes tínhamos falado e discutido (às vezes altas horas da manhã, o dia aflorando do silêncio do fim da noite) sobre a mesma coisa mas hoje tudo foi diferente, não pela minha parte mas pela dele. Ele estava maçado da viagem a Lisboa e da estadia aí de 3 dias onde foi buscar a Ângela e talvez pelo ar sério que a vida da rapariga introduziu na sua vida, tinha uma disposição diferente para ouvir d’uma maneira humana aquilo que costuma ouvir à procura de polémica.
Falámos da melancolia do nosso destino individual, da tristeza da nossa vida social, do afundamento de toda a confiança e de toda a esperança e através de tudo e apesar de nós próprios falámos sempre do amor e da morte. Sobretudo da morte. A ele impressiona o desaparecimento de todo o viver físico, a corrupção da carne, a mim tudo ao contrário, impressiona-me a presença permanente da morte como sombra que devora já neste instante a minha própria vida. Para mim não é nada que esteja lá no fim da rua esperando-me mas uma sombra que caminha dentro de mim e me obriga a certos rodeios e certas hesitações nos caminhos que vou seguindo.
ms. inédito, em pequeno bloco de notas.
“Diário” in “Dispersos e inéditos de Eduardo Lourenço” Colóquio/Letras, n.º 171, Maio/Agosto 2009, Fundação Gulbenkian, pp. 27-29.
Carta de 22/12/1953 dirigida ao Prof. Joaquim de Carvalho publicada in Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia, organização de Maria Manuela Cruzeiro e Maria Manuel Baptista, 2003 Porto, Campo das Letras, p. 97.
3 páginas inéditas do Diário.
Agenda de bolso, “22 Donnerstag”, 1954
“Não é preciso invocar a história da minha família, desde os meus bisavós, mesmo se as recordações do que ouvi, enquanto criança, mo permitiam. Digo apenas que os meus pais, Joseph Salomon e Hélène Marie Françoise Bouhon se casaram a 25 de Abril 1916 na pequena povoação de Plurien, a dois kilómetros do mar e que a partir de 1924 se iria tornar uma estação balnear de renome. Noël, o meu irmão mais velho nasceu em 1917, a minha irmã Claire em Março de 1918 e em Março de 1923 a outra irmã Reine. Em 1923 a minha ‘pequena’ família muda-se para Bodéo, lugar onde nasci em Agosto de 1928. Em 1934 nasce minha irmã mais nova em Saint-Lormel onde a famíla já ‘grande’ viverá momentos de alegria familiar mas também muitas dificuldades durante a ocupação alemã. Os meus irmãos mais velhos fizeram parte da Resistência. Nöel, que com outros colegas – durante a Guerra Civil de Espanha – havia criado uma forma “sui generis” de transportar víveres e munições para as forças republicanas em Madrid, entra na Resistência. Claire seguiu-lhe o exemplo e distribuía panfletos hostis aos alemães enquanto eles ocuparam Saint-Lormel. Reine foi elemento de ligação entre as várias células da Resistência e com o risco da própria vida, se fosse descoberta, transportava explosivos e armas nas bolsas da sua bicicleta. Mas nestes tempos difíceis os meus pais tiveram, do mesmo modo, uma grande coragem pois não hesitaram em esconder na mansarda da nossa casa um jovem resistente. Mais tarde ele foi vítima de uma emboscada e morreu, infelizmente. São factos que nos marcaram para sempre… mas lembro-me agora de um facto anterior logo após a vitória de Franco, quando alguns oficiais republicanos fugiram para França e viviam em condições terríveis em campos de refugiados. Nöel explicando aos meus pais como era a vida no campo de Argelès, logo eles se prontificaram a ajudar, conforme podiam, e a receber em casa um desses refugiados. Foi assim que Angel Ballesteros se tornou um novo membro da família… tantas histórias que o tempo de uma vida permite trazer à memória! Mas éramos bretões, resistíamos a tudo! […] Entretanto estudávamos na Universidade. Nöel dava os primeiros passos na sua carreira universitária que lhe permitiria tornar-se um hispanista de renome internacional. Influenciado por ele, sem dúvida, na Universidade também eu me debruçava sobre o mundo hispânico mas o da América latina. A minha estadia no México foi de tal modo importante que ainda hoje a recordo como sendo uma ‘recordação emocionada’… Quando conheci Eduardo ele não dominava ainda bem o francês mas falava com todos, tomava parte em debates, discussões filosóficas e literárias, era de uma simpatia e ‘tagarelice’ contagiante, eu dizia que ele era um “bavard sympathique”, um falador simpático […] O nosso casamento foi uma festa simples com toda a família e amigos reunidos. De Portugal tinha chegado Maria Alice, a irmã mais nova do Eduardo, os que eram naquele tempo crianças ainda hoje se lembram do ambiente de alegria à volta do ‘casal’ e creio que algumas das fotografias tiradas na altura são capazes de mostrar isso, enfim… tínhamos a vida pela frente, um destino a partilhar, um longo caminho a percorrer…”(Depoimento de Annie Salomon de Faria prestado em Vence (2007) ao responsável pela catalogação e inventário do Acervo de Eduardo Lourenço).
Três páginas inéditas do Diário
“Heidegger gostava muito da obra de Cézanne, da Provença, de um modo geral do sul da França que havia visitado, pelo primeira vez em 1955, a fim de participar nas reuniões de Cerisy-la-Salle e é neste ano que conhece Georges Braque e René Char de quem se torna amigo. Nas vésperas de eu partir para o Brasil proferiu uma conferência na Universidade de Aix-en-Provence subordinada ao tema “Hegel et les Grecs”. Claro que tinha de assistir. A conferência foi em alemão mas havia o que hoje se pode chamar “tradução simultânea” por um professor francês – se não me engano quem traduzia era o Prof. Sagave – de modo que essas 22 folhas com a indicação manuscrita por mim: “M. Heidegger. Aix-6/20 minutos: 20 Mars 58. “Hegel et la Grèce”” correspondem às notas que eu ia tirando durante a conferência. Hegel sublinhava o enraizamento da modernidade na cultura grega, a Grécia foi, para ele, uma étape maior da história entendida como desenvolvimento de uma racionalidade imanente, era a primeira pátria do Espírito. Foi um momento histórico esta conferência tanto mais que eu me vinha ocupando da sua obra que era, frequentemente, tema de discussões amigáveis com Pierre Aubenque. Ele vivia no nosso prédio e em Montpellier, era um amigo de todos os dias, tal como Jean Joubert. Já nessa altura Pierre era um grande estudioso de Aristóteles. Hoje é uma autoridade universitária neste campo”.(Depoimento de E.L. prestado em 2012 ao responsável pela catalogação e inventariação do seu Acervo).
“Este livro de Pierre Aubenque, como lhe disse antes era um colega e grande amigo dos tempos de Montpellier, está associado a uma história de certo modo rocambolesca. Eu desejava traduzi-lo para português durante as férias grandes que vinha passar em Portugal e trazia-o na pasta quando em 1964 atravessei a fronteira de Vilar Formoso onde fui preso. Desconhecia por completo haver uma ordem de captura contra mim, por parte da PIDE, devido ao facto de em 1962 ter assinado o texto de um “telegrama, protesto, ou manifesto” (foi deste modo que me acusaram…) dirigido ao Presidente da República protestando contra a morte do Dias Coelho e pedindo a amnistia dos presos políticos. Como me deixaram levar a pasta para a prisão aproveitei para ler e anotar o livro, não pensei em mais nada, o tempo correu mais depressa… devido a esta leitura foi quase uma “prisão filosófica”… que tempos esses!”(Depoimento prestado por EL, em 2011, ao responsável pela inventariação e catalogação do seu Acervo).
In “A Miragem Brasileira” entrevista por Rui Moreira Leite, cf. Colóquio/Letras “Eduardo Lourenço – uma ideia do mundo”, nº171, Maio/Agosto 2009, pp.296 e sgs.
Cidade de negócios, cidade do jogo, do prazer, enfim tão provinciana. de Alexandre Herzen, o grande polemista e revolucionário do séc. XIX, a Graham Green passando por Nietzsche, Tchecov ou Panait Istrati (tradução livre do ms. inédito, inacabado, escrito a tinta azul, com apontamentos finais o que pressupõe uma posterior conclusão do texto, não verificada)
“Eduardo Lourenço vive em Vence, no sul da França, numa casa iluminada pelo sol provençal, a 400 metros da capela Matisse. Poderia dizer-se que vive no paraíso europeu, refúgio de génios e artistas à procura do calor e da luz meridional. Um lugar incensado pelo aroma das oliveiras e laranjeiras, protegido pelos ciprestes cortados em cerca, que plantou com as mãos de intelectual – “Suei muito, nunca mais trabalhei tanto na vida” – e pelos livros de uma biblioteca que já alagou o telheiro e a garagem e ameaça inundar o resto da casa. A casa está guardada por um cão electrónico, que ladra…mas não morde. É um alarme original, como tantas coisas na vida deste homem que muito antes de muitos outros já meditava e escrevia sobre a Europa.”Clara Ferreira Alves “Uma certa ideia da Europa” in Expresso, Sábado, 27/3/1993, p. 46-R
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