“Eu fiquei em S. Pedro. Os primeiros dez anos da minha vida foram passados nessa aldeia, muito representativa do nosso atraso. Não havia água nem electricidade […] Sem mitificar a infância, o que, aliás, seria justo e natural, foi um tempo despreocupado, todo entregue à brincadeira, irresponsável. E depois veio a entrada na escola, onde fui um menino aplicado”

In “Retrato de um pensador errante”, texto de Luís Miguel Queirós in Publica, 13/05/2007, p.42.

“S. Pedro do Rio Seco é uma aldeia, do distrito da Guarda, entre outras aldeias que estão ali ao lado uma das outras, a cinco quilómetros. Não há praticamente comunicação entre elas, porque realmente não têm nada que trocar entre si. Naquele tempo eram economias de pura subsistência. A troca fazia-se apenas em dois sentidos: um para Vilar Formoso, que era a saída para o Mundo, era o caminho-de-ferro que trazia a Europa até ali. […] E depois, havia Almeida que era a sede administrativa do concelho, que ficava a nove quilómetros, mas onde só se ia também para a feira todos os meses, ou para a festa anual. Também se ia lá por ser sede administrativa: o registo civil, o tribunal e o médico […] E foi nesse mundo que eu vivi uma infância relativamente protegida e aberta também. Aquilo era o último estádio da civilização que já era uma civilização capitalista na sua franja mais rudimentar. Praticamente quase só se vivia do que se produzia na aldeia e não havia trocas. Apenas uma pequena troca que permit[ia] às pessoas comprarem qualquer coisa, vestirem-se, calçarem-se, etc. Muitos daqueles lavradores desse tempo não mandavam os filhos à escola porque não estava na perspectiva deles. Também não teriam dinheiro. Ninguém pensava mandá-los para a Guarda para fazer o Liceu, o quinto ano, e muito menos para a Universidade. […] Era um mundo muito arcaico que eu chamo Piccolo Mondo Antico, título de uma novela célebre de Antonio Fogazzaro, que é um título que eu acho admirável. Se algum dia escrevesse memórias sobre S. Pedro, teria um título parecido. Um pequeno mundo morto, ou coisa parecida”.

In O Outro Lado da Lua. A Ibéria segundo Eduardo Lourenço, edição e entrevista de Maria Manuel Baptista, 2005 Porto, Campo das Letras.

“Era o tempo em que uma aldeia era o organismo vivo, espécie de homem colectivo separado do mundo que o desconhecia e ele desconhecia, homem de dura enxada e de seus parcos frutos. Entre a fome e o sol, todos os dias eram seus. Pouco a pouco, esse vasto mundo invadiu-lhe a casa, separou-o de si mesmo convidando-o para manjares mais suculentos que nunca mais lhe saciarão a antiga fome. Envergonhou-se dos tamancos, das meias de algodão, do casaco de sorrobeco, pôs um pouco mais de açúcar no café, aprendeu a ler e a esquecer o que lia e conheceu enfim a sua milenária miséria. Em quarenta anos passou da flauta de Pan e das aventuras de Dafne e Cloé ao esplendor imaginário da televisão e seus amores piegas, seus locutores ventríloquos, vendedores de elixires divinos. Só é pena que tanta felicidade e tanto sonho a domicílio não cure fome de séculos nem faça florir o deserto. As novecentas almas do povoado recolheram à sombra ou esperam por ela. Já não habitam essas cozinhas enfumadas de trogloditas felizes. As mais audazes partiram à busca de alimento, música, cinema, escola. Estão em África, no Brasil, em França, na Alemanha e até em Espanha. Lá é o São Pedro deles. Esta minha aldeia, sem história de ouro e de sangue, navio encalhado na meseta hispânica, enterra-se docemente na sua existência, com todas as luzes apagadas e um carregamento de fantasmas cobertos de antigo suor e de mais antigas lágrimas. Quem os pudesse ressuscitar…”

In Jornal de Letras, Artes e Ideias, 8/5/1996

“Dois anos mais tarde, entraria aqui no liceu, primeira saída do reino protegido de toda a infância que Sartre evoca em Les Mots, e também o percurso sem fim – o que se chama um curso, e é uma batalha incruenta para descobrir o nosso papel na vida […] Mas a Guarda deixou-me sem dúvida a sua marca de cidade que imitava nos seus ritos iniciáticos a lendária Coimbra que mais tarde seria, se não a da vocação, ao menos a pátria da iniciação cultural. A adolescência é o tempo incerto para toda a gente […] Na adolescência, vivemos com naturalidade no sublime. E se aí ele não nos eleva um pouco acima de nós mesmos, corremos o risco de o falhar para sempre. Foi dessas alturas que eram da vida, de sonhos vagos, de vertigem inocentes e duradouras do coração que o ‘Tempo da Guarda’ foi feito para mim. E é assim que se conserva em qualquer desvão da minha memória esburacada […] Pelo menos, assim era para os filhos de modesta extracção, como os meus irmãos e eu que vínhamos de aldeias remotas para ser gente. E que deixados a si mesmos aqui muitas vezes se perdiam, em cafés parados no tempo, dignos do cinema neo-realista. A rádio, nas tardes imóveis dos domingos, enchia o jardim em frente do quartel com a sua música melancólica de fado, de tangos, ou notícias de um mundo onde se preparavam desastres que, como sempre, não nos diziam respeito”

In Jornal de Artes e Letras, Artes e Ideias, 8/5/1996 (1995/9/10) citado in Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia, coordenação de Maria Manuela Cruzeiro/Maria Manuela Baptista, 2003 Porto, Campo das Letras, pp.47-49.

“Depois da escola primária em S. Pedro e do 1º ano no Liceu da Guarda vai para o Colégio Militar – “como podia ter ido para o Seminário” – São seis anos, dos 11 aos 17, interno, no que considera “um buraco negro” na sua vida que não gosta de recordar – “Um tipo do meu género engaiolado!. Não era e não sou de me adaptar a uma disciplina rigorosa. E esta só contribuiu para a minha indisciplina, o meu gosto contestatário, nessa fase da adolescência em que quase se muda de forma, de figura, espécie de metamorfose difícil para alguém com a epiderme mais ou menos sensível como eu.”

Dessa época, conta histórias como a de a sua primeira nota em Filosofia ter sido um… zero, e a nota final a mais alta do curso, 19.

“A lembrança mais dolorosa é a de ficar no Colégio durante as férias da Páscoa. Em vez dos habituais 400 alunos restavam uns 20, como que excluídos do estatuto da maioria. Sentia uma espécie de abandono, que me pode ter marcado para sempre. Recordo-me também de, com 12/13 anos, arquitectar lições, romances históricos de um deles, passado no séc. XVIII, ainda tenho uma ideia nítida. A maior alegria, porém era ir ao cinema na Amadora, com os meus tios ou, mais raramente, ao Lys, em Lisboa com a minha tia […] O cinema da Amadora foi a minha primeira catedral. Não uma igreja, nem uma anti-igreja, mas uma catedral onde vivi os mais exaltantes, os mais sublimes momentos da minha adolescência. Para mim havia então dois portugais: um dentro do cinema, outro fora dele. Aquilo era o céu, o moderno sobrenatural e ao pé dele qualquer outra forma de religiosidade empalidecia”.

José Carlos de Vasconcelos “O Mundo Secreto de Eduardo Lourenço” in VISÃO, 22/5/2003, p.144.

“[…] Cheguei a Coimbra com o máximo de ilusões que um estudante pode ter, convencido de que a Universidade ia abrir-me um futuro, ia dar-me horizontes pelos quais inconscientemente todo o adolescente suspira. E descobri cedo que, com uma ou duas excepções, que sempre existem no sistema universitário, me encontrava dentro de um sistema pedagógico e de um discurso extremamente fossilizados […] Devo dizer, em nome da verdade, que o ensino da filosofia propriamente dito não foi aquele que me suscitou a decepção universitária-tipo de que falei há pouco. Entre 1940 e 1945, quando fiz o meu curso, a história e filosofia estavam unidas, e era essa ligação que era mais criticável. Em Coimbra, era no campo próprio dos estudos históricos que o estudante tinha razões para considerar que esse ensino não tinha aquela qualidade universitária a que podia aspirar legitimamente. Não que, em geral, esses mestres não soubessem ou não dominassem certo campo. O que acontecia era que a maioria deles separava a investigação erudita, em que eram mestres, do ensino propriamente dito […] Não havia comunicação entre a actividade própria do professor enquanto erudito e a do professor que dava realmente a sua aula. A aula era dada como um eco de livros mais ou menos reconhecidos e em voga no plano internacional. Não havia, portanto, nesse capítulo, verdadeira inovação ou verdadeiro trabalho pessoal.

Quanto à filosofia, havia, no meu tempo, uma espécie de clivagem que, se fosse abertamente cultivada, e confessada como tal, teria sido interessante […] A filosofia era praticamente sempre a filosofia dos outros. Havia naquele tempo um semestre de História da Filosofia em Portugal, mas era uma cadeira menor e mesmo essa matéria era perspectivada de um ponto de vista da erudição mais do que de um ângulo em que se pudessem realmente discutir os problemas profundos da realidade portuguesa”.

In Eduardo Lourenço Cultura e política na época marcelista, entrevista de Mário Mesquita, 1966 Lisboa, Edições Cosmos, pp. 30-32.

Hoje durante toda a meia tarde até ao anoitecer conversei com o Carlos [Oliveira] como raras vezes me tem acontecido conversar com alguém, mesmo com os mais queridos dos seres. Já muitas vezes tínhamos falado e discutido (às vezes altas horas da manhã, o dia aflorando do silêncio do fim da noite) sobre a mesma coisa mas hoje tudo foi diferente, não pela minha parte mas pela dele. Ele estava maçado da viagem a Lisboa e da estadia aí de 3 dias onde foi buscar a Ângela e talvez pelo ar sério que a vida da rapariga introduziu na sua vida, tinha uma disposição diferente para ouvir d’uma maneira humana aquilo que costuma ouvir à procura de polémica.
Falámos da melancolia do nosso destino individual, da tristeza da nossa vida social, do afundamento de toda a confiança e de toda a esperança e através de tudo e apesar de nós próprios falámos sempre do amor e da morte. Sobretudo da morte. A ele impressiona o desaparecimento de todo o viver físico, a corrupção da carne, a mim tudo ao contrário, impressiona-me a presença permanente da morte como sombra que devora já neste instante a minha própria vida. Para mim não é nada que esteja lá no fim da rua esperando-me mas uma sombra que caminha dentro de mim e me obriga a certos rodeios e certas hesitações nos caminhos que vou seguindo.

ms. inédito, em pequeno bloco de notas.

Maio de [1949] Salamanca – 10 horas da noite Que estranho jogo o nosso nestas cinco horas, o combóio arrastando-me na noite para um futuro improvável de pintor e eu caminhando em sentido inverso para um passado de adolescente que, subitamente, morreu entre as minhas mãos […] Sou estrangeiro apenas há poucas horas. E tanto bastou para encontrar a primeira palavra decisiva do meu destino. Estrangeiro. Ausente. Sózinho, entregue ao meu passado e à clarividência desta primeira noite sem ninguém conhecido à minha volta, descobri que nunca fui outra coisa desde a minha infância […] Burgos – 2 horas da noite A partir de Salamanca o rumor das conversas desapareceu lentamente tragado pela marcha obstinada através desta Espanha invisível […] Há uma hora que o silêncio é total. Uma ou outra silhueta verde, armada, passa um instante sob a lâmpada em frente das portas. É o único símbolo de uma vigilância sobre o próprio silêncio. A esta hora da noite seria impossível dizer que atravessamos uma terra de angústia. É sobre a minha memória recente, sob invisíveis rostos devastados que esta multidão adormecida está passando […] Durante três anos li crónicas sobre esta guerra. Crónicas de estrangeiros. Crónicas estrangeiras. Não compreendiam. É preciso estar enraízado na aridez desta terra que prolonga a minha para compreender. Quem não tem no sangue esta secura mortal, este combate desesperado que é já a própria terra, nunca compreenderá. Terra onde os melhores combaterão até à morte com os melhores. Terra onde os homens violentos terão um amor incompreensível por outros igualmente violentos que detestam […] Amam o granito. Morrem sobre o granito. E quem não é capaz de entender isto passa ao lado de Espanha.

“Diário” in “Dispersos e inéditos de Eduardo Lourenço” Colóquio/Letras, n.º 171, Maio/Agosto 2009, Fundação Gulbenkian, pp. 27-29.

“Afinal tudo se passou um pouco ao contrário do que eu imaginara e não pude enviar as malfadadas críticas pelo que peço todas as desculpas. Quando cheguei apanhei uma tal gripe, que na primeira semana não saí da cama. Logo que me levantei o serviço do Instituto, mais do que eu supusera, tomou-me de tal modo o tempo que a calma para acabar as críticas me faltou […] A respeito de livros, a Alemanha encontra-se numa circunstância aborrecida, sobretudo no que diz respeito às grandes edições dos filósofos mais importantes. A grande cidade editora, como o Senhor Doutor sabe melhor do que eu, era Leipzig, agora nas mãos dos russos. Por isso é preciso perder uma quantidade de tempo apreciável para descobrir alguma coisa que valha a pena. Quanto aos cursos de Filosofia a Universidade de Hamburgo está longe dos tempos de Cassirer. Um dos catedráticos saiu, o velho Cappele da edição dos pré-socráticos aposentou-se e não se encontra agora em exercício senão o Prof. Ralf, pessoa de grande simpatia mas de quem não posso avaliar ainda os méritos por causa das minhas deficiências no alemão. Faz um curso sobre Nietzche e comenta Heidegger no seminário. Este é o trabalho mais fecundo que se faz nas universidades alemãs.”

Carta de 22/12/1953 dirigida ao Prof. Joaquim de Carvalho publicada in Tempos de Eduardo Lourenço – Fotobiografia, organização de Maria Manuela Cruzeiro e Maria Manuel Baptista, 2003 Porto, Campo das Letras, p. 97.

[Heildelberg] 1955 Nasci num tríplice túmulo e seria necessário a Deus um esforço três vezes maior do que o que lhe custou Lázaro para me chamar à luz: Portugal é um túmulo na Europa e a Europa um túmulo mais largo no túmulo do mundo. A nossa voz foi sempre um gemido à beira do mar mas ouvia-se enquanto a Europa era o ouvido da história humana. Mas a Europa é um velho perdido na memória farta da sua imaginação juvenil. Um mundo existe que não é a Europa e esse mundo é imenso e é o futuro. Heidelberg, 19 Maio 55 Os meus grandes amores da pintura são Boticelli e Rembrandt. O primeiro me deu aquela espécie de eternidade sonhada que todos levamos dentro. Essa eternidade tem a face divina de uma Primavera sem fim, de uma Natureza promovida à sua lei sem tempo. Essa pintura é a negação mais vibrante e extática da Morte que eu conheço, um mundo anterior à Queda com que sonho a tantas horas do dia. Rembrandt, ao contrário, é o pintor do tempo, o misterioso espião do estremecimento contínuo, do esfarelamento interior de todos os frutos da Criação a começar por si. Os seus auto-retratos são feitos de uma poesia luminosa mas o seu brilho é trémulo e ardente como o da vela e das lágrimas. E todavia eu os reconcilio no meu coração, como se um fosse o negativo do outro. Aquela Primavera, aquela linha doente de ternura tão externa aos corpos que recria, são de uma melancolia lancinante, imagem luminosa e inacessível do sonho. Aquela Primavera tem uma face mortal: é a nossa face de ausentes dessa mesma beleza. Ao contrário o rio mortal da pintura de Rembrandt, a cintilação passageira do seu mundo recriam do interior pelo abso[lu]to da sua verdade, o milagre de uma eternidade. Todas as coisas são mortais mas merecem a glória luminosa da sua morte, mas quando as revemos nos espelhos da morte devolvem para nós uma cintilação imortal. Heidelberg, 3-VI-55 S[anto] Agostinho diz que ser misericordioso é “dar o seu coração aos miseráveis” (miseris cor dare). Etimologia estranha, mas mais estranha para mim essa doutrina. Verdadeira, se miseráveis são todos os homens com a sua miséria ou mesmo a particular miséria de homens particulares. Mas impossível de aceitar se miseráveis são uma categoria de homens, uma espécie de classe social como eles eram no tempo de S[anto] Agostinho, como eles o são ainda no nosso, na realidade, mas mais ainda na consciência bem pensante que, ao dizer “miseráveis”, se distingue do próximo. A misericórdia é um sentimento que o homem não pode inspirar nem conceder ao homem. A misericórdia supõe Deus e a nossa misericórdia diante dele. É Ele, e não nós, quem pode dar o seu coração aos “miseráveis”.

3 páginas inéditas do Diário.

“Não escrevi nada. Casei-me. Tudo foi mais simples do que o imaginava, tão simples que não tive a sensação de me dar um espectáculo nem a mim mesmo como é costume. Diga-se de passagem que eu assisti ao meu casamento como se estivesse em divino. A felicidade é invisível? Só me toca a aflição e os deuses o permitiram eu já não estava aflito nesse dia. Annie ajudou-me a não me dar conta do definitivo que teria introduzido nos meus olhos essa sombra irredutível dos desastres donde me ausento”.

Agenda de bolso, “22 Donnerstag”, 1954

“Não é preciso invocar a história da minha família, desde os meus bisavós, mesmo se as recordações do que ouvi, enquanto criança, mo permitiam. Digo apenas que os meus pais, Joseph Salomon e Hélène Marie Françoise Bouhon se casaram a 25 de Abril 1916 na pequena povoação de Plurien, a dois kilómetros do mar e que a partir de 1924 se iria tornar uma estação balnear de renome. Noël, o meu irmão mais velho nasceu em 1917, a minha irmã Claire em Março de 1918 e em Março de 1923 a outra irmã Reine. Em 1923 a minha ‘pequena’ família muda-se para Bodéo, lugar onde nasci em Agosto de 1928. Em 1934 nasce minha irmã mais nova em Saint-Lormel onde a famíla já ‘grande’ viverá momentos de alegria familiar mas também muitas dificuldades durante a ocupação alemã. Os meus irmãos mais velhos fizeram parte da Resistência. Nöel, que com outros colegas – durante a Guerra Civil de Espanha – havia criado uma forma “sui generis” de transportar víveres e munições para as forças republicanas em Madrid, entra na Resistência. Claire seguiu-lhe o exemplo e distribuía panfletos hostis aos alemães enquanto eles ocuparam Saint-Lormel. Reine foi elemento de ligação entre as várias células da Resistência e com o risco da própria vida, se fosse descoberta, transportava explosivos e armas nas bolsas da sua bicicleta. Mas nestes tempos difíceis os meus pais tiveram, do mesmo modo, uma grande coragem pois não hesitaram em esconder na mansarda da nossa casa um jovem resistente. Mais tarde ele foi vítima de uma emboscada e morreu, infelizmente. São factos que nos marcaram para sempre… mas lembro-me agora de um facto anterior logo após a vitória de Franco, quando alguns oficiais republicanos fugiram para França e viviam em condições terríveis em campos de refugiados. Nöel explicando aos meus pais como era a vida no campo de Argelès, logo eles se prontificaram a ajudar, conforme podiam, e a receber em casa um desses refugiados. Foi assim que Angel Ballesteros se tornou um novo membro da família… tantas histórias que o tempo de uma vida permite trazer à memória! Mas éramos bretões, resistíamos a tudo! […] Entretanto estudávamos na Universidade. Nöel dava os primeiros passos na sua carreira universitária que lhe permitiria tornar-se um hispanista de renome internacional. Influenciado por ele, sem dúvida, na Universidade também eu me debruçava sobre o mundo hispânico mas o da América latina. A minha estadia no México foi de tal modo importante que ainda hoje a recordo como sendo uma ‘recordação emocionada’… Quando conheci Eduardo ele não dominava ainda bem o francês mas falava com todos, tomava parte em debates, discussões filosóficas e literárias, era de uma simpatia e ‘tagarelice’ contagiante, eu dizia que ele era um “bavard sympathique”, um falador simpático […] O nosso casamento foi uma festa simples com toda a família e amigos reunidos. De Portugal tinha chegado Maria Alice, a irmã mais nova do Eduardo, os que eram naquele tempo crianças ainda hoje se lembram do ambiente de alegria à volta do ‘casal’ e creio que algumas das fotografias tiradas na altura são capazes de mostrar isso, enfim… tínhamos a vida pela frente, um destino a partilhar, um longo caminho a percorrer…”

(Depoimento de Annie Salomon de Faria prestado em Vence (2007) ao responsável pela catalogação e inventário do Acervo de Eduardo Lourenço).

“6 Fev[ereiro] 56 Distraído, em certos momentos a felicidade de um recanto tranquilo, pouco mais que pedra batida por um sol de inverno, subtrai-me à preocupação e à melancolia. Sobre o cimo de um instante a alma repousa. Mas no dar-se conta duma felicidade, ao dizer-lhe: “para um momento doce instante, os olhos são já olhos de todas as ausências, aquelas pedras e aquele sol a noite interna dos meus mortos e a minha felicidade de há uns momentos [é] um navio de papel encharcado pela dor do mundo. Todas as alegrias são da imaginação. Todas as tristezas são da memória”.   4 de Maio 56 Gerações e gerações de homens passam e a terra ondula como uma mulher sempre jovem, o dorso dos seus mares e os dedos das suas árvores. Este vento invisível e doce do começo de verão converte em seres humano as árvores do jardim. Uma grande e anónima felicidade banha hoje este jardim ainda ontem imerso no sortilégio sonâmbulo do inverno. E esta anónima felicidade é a minha, é a da humanidade de sempre amiga de si mesma e esquecida da sua morte em cada primavera”.   “Mont[pellier] 5 de Maio 56 Há uma raça de garotos que força alguma pode conservar em casa. A sua casa é sempre “noutro lado”. Eu fui desses garotos que com ordem, mas sobretudo sem ela, se escapam para a rua, vasto mar das suas odisseias. Mesmo quando a rua não é senão a casa dos outros. Pois o que esses garotos buscam não é só pôr-se ao abrigo dos deuses todos poderosos das famílias. Mas entre os que fogem há duas raças ainda: os que buscam cantos secretos, lugares misteriosos onde enfim eles são o que são; e os que fogem para cair no reino dos outros. Os amantes da natureza e os amigos dos homens. O meu paraíso foram sempre os outros. Mas eles me devolviam a minha solidão como a natureza. Não fui copo de todas as águas, nem sequer das que cabiam no copo que era: fui água de todos os copos. Excepto dos que me ofereceram”.

Três páginas inéditas do Diário

“Heidegger gostava muito da obra de Cézanne, da Provença, de um modo geral do sul da França que havia visitado, pelo primeira vez em 1955, a fim de participar nas reuniões de Cerisy-la-Salle e é neste ano que conhece Georges Braque e René Char de quem se torna amigo. Nas vésperas de eu partir para o Brasil proferiu uma conferência na Universidade de Aix-en-Provence subordinada ao tema “Hegel et les Grecs”. Claro que tinha de assistir. A conferência foi em alemão mas havia o que hoje se pode chamar “tradução simultânea” por um professor francês – se não me engano quem traduzia era o Prof. Sagave – de modo que essas 22 folhas com a indicação manuscrita por mim: “M. Heidegger. Aix-6/20 minutos: 20 Mars 58. “Hegel et la Grèce”” correspondem às notas que eu ia tirando durante a conferência. Hegel sublinhava o enraizamento da modernidade na cultura grega, a Grécia foi, para ele, uma étape maior da história entendida como desenvolvimento de uma racionalidade imanente, era a primeira pátria do Espírito. Foi um momento histórico esta conferência tanto mais que eu me vinha ocupando da sua obra que era, frequentemente, tema de discussões amigáveis com Pierre Aubenque. Ele vivia no nosso prédio e em Montpellier, era um amigo de todos os dias, tal como Jean Joubert. Já nessa altura Pierre era um grande estudioso de Aristóteles. Hoje é uma autoridade universitária neste campo”.

(Depoimento de E.L. prestado em 2012 ao responsável pela catalogação e inventariação do seu Acervo).

“Este livro de Pierre Aubenque, como lhe disse antes era um colega e grande amigo dos tempos de Montpellier, está associado a uma história de certo modo rocambolesca. Eu desejava traduzi-lo para português durante as férias grandes que vinha passar em Portugal e trazia-o na pasta quando em 1964 atravessei a fronteira de Vilar Formoso onde fui preso. Desconhecia por completo haver uma ordem de captura contra mim, por parte da PIDE, devido ao facto de em 1962 ter assinado o texto de um “telegrama, protesto, ou manifesto” (foi deste modo que me acusaram…) dirigido ao Presidente da República protestando contra a morte do Dias Coelho e pedindo a amnistia dos presos políticos. Como me deixaram levar a pasta para a prisão aproveitei para ler e anotar o livro, não pensei em mais nada, o tempo correu mais depressa… devido a esta leitura foi quase uma “prisão filosófica”… que tempos esses!”

(Depoimento prestado por EL, em 2011, ao responsável pela inventariação e catalogação do seu Acervo).

Como muitos portugueses, que em princípio não estavam vocacionados para uma emigração possível, antes de ser convidado para dar aulas na Bahia, no ano de 1858, eu tinha as ideias gerais que uma pessoa pouco cultivada pode ter acerca do Brasil. De qualquer modo, eram de ordem puramente ideal, apesar de eu ter tido alguém na minha família que emigrou para aqui (um tio do meu pai) […] Quando vim para o Brasil a cultura era apenas livresca, isto é, feita através de leituras e como toda a minha geração – e já vinha um pouco da geração anterior – estávamos a par do que naquela altura era novidade: o impacto da cultura brasileira. Da literatura brasileira, mais que da cultura, explico melhor: pertenço a uma geração para a qual Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel Queiroz eram presenças muito vivas no contexto cultural português […] A minha estadia no Brasil foi curta, apenas de um ano. Nós nunca sabemos muito sobre as experiências que vivemos, qual foi o seu real impacto, porque muitas vezes só mais tarde é que se toma conhecimento disso. De qualquer modo foi um impacto curioso porque, como experiência, não foi uma que terminasse muito bem… aquela ideia de ficar no Brasil. A Annie tinha obtido uma licença e se ao fim de um ano não encontrássemos aqui um futuro… portanto regressámos a França. […] Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o arrière plan do Labirinto da Saudade tem a ver com a minha estadia na Bahia […] De resto nesta altura já conhecia algumas das pessoas que fizeram parte do que eu chamo a diáspora da inteligência portuguesa do séc. XX, sobretudo dos meados do séc. XX. O Casais Monteiro – que eu conheci, realmente, em Portugal – conheci-o melhor na Bahia, o Agostinho da Silva, o Eudoro de Sousa mas estes eu tinha conhecido em Santa Catarina, onde tinha feito uma conferência. E depois ocorreu um acontecimento interessante, no ano em que nós partimos do Brasil, em 1959, que foi o IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, que concentrou na Bahia muita gente […] Foi uma experiência muito curiosa, porque naquela altura a Universidade da Bahia estava a nascer. O Reitor Edgar dos Santos era um homem muito poderoso no Brasil, tinha sido Ministro da Educação, um grande empreendedor, fundou a Universidade da Bahia […] Aquilo era uma coisa perfeitamente desfasada em relação à preparação que eu imaginava terem tido os alunos, ou que eu verifiquei depois que tinham tido. Salvo um rapaz, José Xavier que hoje já deve estar aposentado, mas que até há bem pouco tempo era professor ainda em Fortaleza. E este rapaz tinha grande educação, tinha trabalhado. E foi ele que me ofereceu a edição Aguilar da Obra Poética do Fernando Pessoa – que também deve ter tido alguma influência – de uma forma muito simpática, no fim, quando nos fomos embora. Este rapaz, depois ficou muito sob a influência de Agostinho da Silva. […] Socialmente conheci, enfim na Bahia o Jorge Amado que na minha juventude fora uma referência, um ícone […] E conheci ali um grupo de jovens intelectuais da Bahia. Um deles, mais tarde, formou-se em Antropologia e há na Bahia um Instituto com o seu nome, era o Vivaldo Costa Lima. Dava-se muito bem com essa cultura afro-brasileira e acabou, pelo menos, por ir para o Senegal. Também estava lá nesta altura – mas eu conheci-o pouco – o famoso fotógrafo Pierre Verger, que era mais velho. Na Bahia, que nesses anos era ainda um meio pequeno, a cidade devia ter cerca de 500 mil habitantes, conheci ainda outros intelectuais. E apareceu um jornal novo para o qual eu fui convidado a colaborar, por um menino chamado Glauber Rocha. Desse modo nos conhecemos e, com outros mais, ele veio a algumas das minhas aulas.[…] Assistimos ao casamento dele, casou com a Ignez que era uma bonita menina lá do sítio. E o almoço do casamento foi assim, como dizer? Delicioso… Mais tarde reencontrei-o em Cannes muito mudado. Quase nem o reconheci. Percebi que havia ali um problema que eu desconhecia […] Eu tratava entre outras coisas de Fenomenologia. A de Hegel… Só quem conhece o Brasil pode apreciar o que isto tem de “barroco” no sentido mais forte do termo. A Bahia dessa época não era precisamente a cosmopolita São Paulo. Contudo a Bahia já tinha nessa altura essas coisas que só acontecem no Brasil. Por exemplo: lá estava o maestro Koellreutter que iniciara essa capital do Barroco brasileiro e nosso na música mais vanguardista. Imagine-se o que era um concerto de Schönberg ou Alban Berg na Reitoria da Bahia para umas vinte pessoas. Era o mesmo que “ensinar” Hegel…[…] No teatro era um outro, Martim Gonçalves”.

In “A Miragem Brasileira” entrevista por Rui Moreira Leite, cf. Colóquio/Letras “Eduardo Lourenço – uma ideia do mundo”, nº171, Maio/Agosto 2009, pp.296 e sgs.

“Se eu quiser ser honesto – e certamente que o desejo ser – confesso que nada tenho a dizer de muito pessoal sobre Nice. Como toda a gente aprecio o cenário, fico feliz pelo seu famoso azul. Mas não o poderia assinar como Yves Klein que é filho do azul de Nice. Nunca fui em França um emigrante nem um emigrado. Apenas rigorosamente um migrante. Nice é a cidade ideal para esse facto. Um pouco como Trieste ela coloca-se entre dois mundos e não como uma cidade de vocação turística. Devido a este facto podemo-nos sentir em Nice completamente estrangeiros. Mas é difícil, salvo para os que nela tem raízes desde há muito tempo, de nos sentirmos enraizados. Eu creio que foi Platão que comparou o homem a uma árvore cujas raízes crescem para o céu. Vivo nesta região desde há dezoito anos, vivi em Nice nove anos mas as minhas raízes aqui – se é que posso falar de raízes – cresceram para o céu não para o que há de profundo nesta terra e que eu aprendi a conhecer sobretudo com as recordações de um verdadeiro “niçois” como o é Max Gallo, velho amigo meu. Uma cidade são as ruas, as praças, os recantos de sonho. E há-os em Nice… Habitei perto de Cimiez onde se respira ainda um ar antigo e uma doçura italiana nos jardins do seu mosteiro. Gosto muito também da ‘velha’ Nice, da Praça Garibaldi a mais italiana desta cidade tão pouco francesa. Mas uma cidade são também os rostos, as pessoas e eu nunca tive ocasião de me misturar de forma verdadeira com os habitantes de Nice. E ainda menos desde que tenho casa em Vence. Nos anos em que residi em Nice – de 1965 a 1974 – a França vivia ainda sob a sombra de De Gaulle e o que acontecia em França dizia respeito ao mundo. Foi aí que vivi Maio de 68, uma das experiências mais estranhas por que passei. Durante um mês Nice tentou integrar-se na história deste país. Maio 68 foi um fenómeno quase universal. Mas passado um mês a cidade de Nice voltou ao que era antes: cidade fora da grande história, voluntária em estar fora do tempo, paraíso para os últimos dias de pessoas ricas, ou friorentos franceses, do resto da Europa, do resto do mundo. No fundo porque toda a gente aqui é migrante como eu. O enraizamento não se faz em relação a esta grande cidade completamente voltada para o seu próprio exterior. O que eu gosto é do “ancien pays”, a sua paisagem seca, a sua história, as pedras antigas, já um lado provençal tão semelhante à nossa terra. Em todo o caso da minha, que nada tem a ver com o mar mas com a aridez do planalto que se prolonga por Castela. Eu gosto destas pequenas cidades, construídas à escala humana, vivas, ainda fraternas, como Vence”

Cidade de negócios, cidade do jogo, do prazer, enfim tão provinciana. de Alexandre Herzen, o grande polemista e revolucionário do séc. XIX, a Graham Green passando por Nietzsche, Tchecov ou Panait Istrati (tradução livre do ms. inédito, inacabado, escrito a tinta azul, com apontamentos finais o que pressupõe uma posterior conclusão do texto, não verificada)

“Eduardo Lourenço vive em Vence, no sul da França, numa casa iluminada pelo sol provençal, a 400 metros da capela Matisse. Poderia dizer-se que vive no paraíso europeu, refúgio de génios e artistas à procura do calor e da luz meridional. Um lugar incensado pelo aroma das oliveiras e laranjeiras, protegido pelos ciprestes cortados em cerca, que plantou com as mãos de intelectual – “Suei muito, nunca mais trabalhei tanto na vida” – e pelos livros de uma biblioteca que já alagou o telheiro e a garagem e ameaça inundar o resto da casa. A casa está guardada por um cão electrónico, que ladra…mas não morde. É um alarme original, como tantas coisas na vida deste homem que muito antes de muitos outros já meditava e escrevia sobre a Europa.”

Clara Ferreira Alves “Uma certa ideia da Europa” in Expresso, Sábado, 27/3/1993, p. 46-R

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